Eventos adversos e o médico em especialização

Por André Luis Ottoboni e Claudia Marquez Simões

O ambiente de ensino difere do ambiente puramente assistencial em diversos aspectos, podendo ter implicações também relacionadas à segurança do paciente. Neste processo, alguns elementos podem ser extremamente favoráveis, como: o acesso a novas tecnologias e conceitos de ponta pelo ambiente didático, além de um ambiente com proteção redundante conferida pelo professional em formação e seu preceptor que está realizando a supervisão direta.

Por outro lado, um fator que pode prejudicar a atuação segura e tornar o cuidado frágil é o fato de que muitas vezes as diversas instituições de ensino possuem grande número de pacientes para cada professional de saúde. Neste contexto, pode-se destacar o recente crescimento de instituições privadas que tem o ensino associado, agregando o melhor dos dois cenários, como as tecnologias de ponta, atualização e cuidado redundante associado a uma proporção adequada de profissionais de saúde para uma menor proporção de pacientes.

Os médicos em formação têm um grande contato com pacientes e seus familiares e/ou cuidadores, além de um intenso contato com as diversas equipes assistenciais que interagem com o paciente, deixando-o em uma situação privilegiada de acesso à informação e com uma visão única do cuidado global do paciente.

Já foi demonstrado que os médicos em especialização, principalmente da área cirúrgica, incluindo a anestesia, são os que mais relatam eventos adversos1. Muitas são as possíveis justificativas para este achado, que variam desde a possibilidade de identificação precoce dos eventos anestésico-cirúrgicos até mesmo a cultura de discussão e relatos de complicações nesta área. O número de eventos adversos relatados foram maiores conforme o número de horas trabalhadas por semana aumentava, na maior parte acima de 80 horas semanais, reforçando a importante relação entre segurança e descanso dos profissionais de saúde2.

Um ambiente exigente, com alta demanda assistencial associado ao medo de críticas de colegas de equipe, cirurgiões e enfermagem, pode fazer com que um médico em especialização (ME) em anestesiologia hesite em comunicar dúvidas ou problemas aos seus preceptores. Conhecer conceitos sobre segurança do paciente e entender como se conduz um evento adverso, buscando a melhoria contínua, são pontos essenciais para tentar reduzir o efeito da pressão e estresse do ambiente cirúrgico e envolvê-los na cultura de segurança3.

Com este objetivo, há alguns anos, introduzimos atividades relacionadas ao serviço de segurança e qualidade integradas aos estágios dos médicos em especialização. Ao participar de discussões de casos, análise de eventos e auxiliarem a construção de planos de ação os médicos em especialização tornam-se importantes defensores da cultura de segurança e podem auxiliar a melhoria contínua da assistência.  Hoje no Brasil começamos a ter a visão dos principais eventos adversos associados a anestesia através dos relatos do diário de bordo (logbook) dos MEs4.

Devemos ter em mente que provavelmente pode haver subnotificações dos eventos neste cenário por eventuais receios de retaliações ou até mesmo do desconhecimento de como tais casos podem vir a ser conduzidos nos mais diferentes centros formadores.  O melhor cuidado dos profissionais em formação pode auxiliar a melhorar a retenção de conhecimentos, reduzir o esgotamento, diminuir os eventos adversos e ainda melhorar o atendimento ao paciente. Isto posto, fica claro que são necessárias mudanças estruturais e sistêmicas nos modelos de formação e até mesmo de assistência5.

Tais mudanças podem exigir uma reformulação completa do que significa ser um médico em treinamento hoje e também do processo de ensino aprendizagem, podendo auxiliar a formação de melhores profissionais e ainda melhorar a qualidade da assistência reduzindo eventos adversos.

Referências bibliográficas:

  1. Jagsi R, Kitch BT, Weinstein DF, Campbell EG, Hutter M, Weissman JS: Residents Report on Adverse Events and Their Causes. Arch Intern Med 2005; 165:2607–13
  2. Laine C, Goldman L, Soukup JR, Hayes JG: The Impact of a Regulation Restricting Medical House Staff Working Hours on the Quality of Patient Care. JAMA 1993; 269:374–8
  3. Pursell A: Residency, Provider Performance and Patient Outcome. ASA Monit 2019; 83:48–48
  4. Pavão ALB, Mattos S, Silva E, Laguardia J, Doellinger V, Curi E, Casali T, Takaschima A, Almeida A, Albuquerque M, Nunes R: Adverse events in anesthesiology: analysis based on the Logbook tool used by specializing physicians in Brazil. Rev Bras Anestesiol 2019; 69:461–8
  5. Wolpaw JT: It Is Time to Prioritize Education and Well-Being Over Workforce Needs in Residency Training. Acad Med 2019; 94